quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Capítulo 01 - Parte 01

Não era para ser verdade, mas acho que tudo foi verdade

UM


Téo Sanz tinha trabalhado o dia todo. Foi um daqueles dias cansativos dentro da redação do jornal.

No decorrer deste dia saiu para uma entrevista. Voltou. Redigiu uma matéria. Fez pesquisa na Internet. Redigiu outra matéria. Recebeu telefonemas. Redigiu mais matérias. Trabalhou na diagramação de uma página do jornal e na diagramação de cinco páginas da novíssima revista que estavam preparando para a primeira edição. Enfim, como se diz, foi um dia daqueles.

Estava, agora, caminhando até em casa. Teobaldo Sanchez era o seu nome de batismo, reduzido para Téo Sanz nas assinaturas das matérias da Gazeta Diária onde encarava com paixão o árduo trabalho de jornalista. Morava sozinho. Residia próximo a redação do jornal. Nada que o obrigasse a ter um carro ou uma moto.

Como ainda fumava passou no bar do Tadeu e comprou um maço de cigarros. Nesta época já apresentava sinais de problemas no estômago e por isso não tomou nada aquela tarde. Só queria chegar em casa para se refrescar num banho, até porque, já estava atrasado para um compromisso à noite.

— Tem um conhaque novo na prateleira Téo. De primeira. Encomendei pensando em te oferecer quando você passasse por aqui. - Disse Tadeu enquanto se esticava para pegar o litro.

— Oh parceiro, não me leva mal, mas eu ando meio ruim do estômago quando bebo álcool. Acho que preciso fazer uns exames. Vamos ter que adiar um pouco mais esse conhaque aí, mas pode guardar, porque agora vou ter que experimentar. - Disse Sanz saindo logo depois enquanto abria o novo maço de cigarros com o isqueiro em punho.

Caminhando pela rua pensava o jornalista que desde o fim da adolescência ouvia dizer, principalmente nas igrejas que freqüentou em busca de respostas, que dentro de cada um “o espírito milita contra a carne”. Afirmativa que, aliás, consta no Livro Sagrado – a Bíblia, o “nosso” Livro Sagrado, já que existem tantos outros pelo mundo, cada um para o seu povo relacionado.

Em cada passo que dava pela rua em direção ao seu quarto na esquina da praça, parecia que o seu espírito e a sua carne militavam em pensamentos que infestavam sua mente de afirmações e dúvidas ao mesmo tempo. Era como se, quando ele pisasse com o pé direito, militasse o espírito, mas em seguida, quando pisasse com o pé esquerdo, militasse a carne.

E assim caminhava Teobaldo Sanchez, filho de um pai descendente mexicano e mãe nordestina. Teobaldo foi o nome escolhido pela mãe; Sanchez, naturalmente o sobrenome do pai. A personalidade era forte, os traços marcantes e, principalmente, a palavra, uma só. Uma mistura de “Cabra da peste” nordestino com “El cabron” mexicano.

Neste âmbito, às vezes físico e às vezes espiritual, Sanz, como era chamado na Redação da Gazeta Diária, divagava entre a imaginação, a força de vontade e o sobrenatural.

Imaginação porque não sabia onde terminavam, realmente, as coisas que o rodeavam fisicamente, e onde começavam as coisas que não compreendia do mundo sobrenatural — já que acreditava na existência deste; força de vontade porque a sua determinação em encontrar as respostas para o turbilhão de perguntas que o deixava inquieto diuturnamente, era maior do que o esforço que fazia, até mesmo, para se higienizar como, por exemplo, quando deixava de escovar os dentes por dois ou três dias seguidos, apenas por ficar “pensando” durante as manhãs e, o sobrenatural, porque os pensamentos e manifestações que tinha e presenciava não podiam ser deste planeta; às vezes pensava que pertenciam a outra, ou a outras esferas, porque não havia como serem naturais: eram sobrenaturais.

Para um jovem de vinte e nove anos, jornalista em tempos modernos, divagar em esferas que rolam descontroladamente em um mesmo espaço dentro da cabeça, enquanto se caminha pela rua, não é das coisas mais fáceis. Apesar de acostumado às pesquisas para as matérias, como é a praxe de todo profissional da informação, Téo Sanz começara a se debruçar sobre a pesquisa da sua própria existência:

“Quantas vezes você parou para pensar na própria existência? Onde você realmente começou a existir e em qual situação? Qual o sentido da tua existência e o que será de você depois que não mais existir, se ainda não conseguimos explicar de onde viemos, e apenas criamos em torno de duzentas teorias para onde vamos? Você já parou para pensar, ao menos um minuto, nestas e em tantas outras coisas hoje? O que é físico? O que é sobrenatural? O que é realidade? O que é ficção? O que é verdade? O que é mentira?” Estas eram perguntas que se fazia enquanto caminhava, enquanto comia, enquanto se olhava ao espelho e enquanto lia uma página de jornal.

Nas páginas da Bíblia Sagrada que lia constantemente, ele buscava as verdades da sua própria existência para um plano superior, além da naturalidade e da física. Contudo, a verdade fora do contexto terreno parecia ser apenas o que os seus olhos experimentaram, tanto no plano existencial em que vivia, ou seja, no mundo, quanto nos que figurou como testemunha ocular; que testemunhou com os ouvidos, com o coração, com a mente.

Ele não queria saber se as visões sobrenaturais de seus olhos eram fruto da sua fértil imaginação. Apenas, sem querer se apegar a algo que justificasse as insanidades que quase sempre cometia, acreditava no que via. Não era para ser verdade, mas quanto mais os seus passos corriam na incompreensão do desconhecido e sobrenatural, mesmo que dentro de sua cabeça, os espinhos que lhe arrancavam o sangue das plantas demonstravam a realidade de suas loucuras.

Era real, mas não era para ser real. Seus olhos marejados pelo contato forte do vento fitavam o infinito em busca de uma explicação; qualquer... Qualquer coisa. Enquanto nada acontecia, a viagem continuava.

***

Naquela noite suas mãos faziam ecoar os tambores, enquanto puxava os pontos no grande salão, onde tocava há mais de três meses, quando foi chamado ao centro da sala pela primeira vez.

Naquela noite seus pulsos estavam mais firmes sobre os tambores. Os pontos fluíam com naturalidade da sua boca. As mulheres vestidas de branco acompanhavam com alegria em volta batendo palmas e rodando as grandes saias enfeitadas com fartos babados.

Naquela noite não olhava para os “cavalos”. Apenas se concentrava e “viajava” na melodia dançante e sobrenatural. Espíritos pairavam indo e vindo dentro da sala. Rodeavam em círculo acima das cabeças, onde mais de trinta miseráveis buscavam suas verdades, mas o que ele não queria era perder a visão, como os outros.

Sanz tinha que manter o foco em chamas; não queria perder os sentidos. Tinha que ver, não apenas para acreditar, porque já acreditava; tinha que ver para permanecer consciente enquanto suas grandes asas espirituais o levassem para mundos distantes.

A velha líder espiritual o chamou:

— Pode vir. Hoje é o seu dia. — Disse Conceição enquanto mantinha os olhos fixos sobre ele.

Suas mãos silenciaram sobre os tambores. O som aquietou-se. Todos o olhavam, especialmente Conceição. Ela o fitava com um olhar sério. Entretanto, deixava exibir aos experientes lábios certa felicidade por ter o privilégio de iniciar-lhe nas entrelinhas da espiritualidade.

Ela estendeu a mão.

Sanz a olhou nos olhos.

Ela baixou a cabeça momentaneamente e deixou-se notar que se controlou para não ser possuída pelos espíritos. Manteve-se firme, braço estendido, mão a espera. Seu corpo era grande e arredondado, cor escura, cabelos encaracolados e longos, olhar morteiro, lábios grandes, aparência serena, mãe de três filhos, avó de um neto.

O percursionista Téo Sanz deixou pequeno altar improvisado onde alinhavam-se os tambores e onde também se posicionava para os trabalhos o tocador do pandeiro.

Antes de se aproximar da líder espiritual olhou a sala, alta, escura, cheia de fumaça, espíritos circulando próximo ao teto; o recinto tinha cerca de dez passos em largura para cinco em comprimento. O salão era parte de uma grande casa.

Os “cavalos” mais experimentados mantinham a força do ritual enfileirando-se num círculo ao centro, cerca de vinte. Ao fundo o pequeno altar onde se dispunham três tambores, dos quais dois eram tocados por Sanz.

O antigo percursionista, Ricardo Teixeira, tomava o seu lugar atrás dos tambores para dar continuidade puxando os pontos espirituais, mas só conseguia tocar um tambor por vez.

Os outros que giravam no salão antes que parasse de repercutir os tambores terminavam sua gira. Começavam a parar; o silêncio tomava do lugar.

Teobaldo adentrou o círculo. Conceição o esperava ao centro. Os “cavalos” parados; os olhos alheios na contemplação de seu esquálido corpo moreno.

A líder mantinha-se de braço estendido; seus passos lentos se aproximavam: o grito de Ricardo quebrou o silêncio e os tambores ressoaram novamente. Os “cavalos” voltaram a girar.

Mas desta vez algo estava diferente. As mentes estavam mais inconscientes do que antes. Os corpos giravam mais forte. Ricardo Teixeira parecia mais experiente. Suas mãos marcavam forte o ritmo acelerado que acentuou.

Ao aproximar-se da velha líder, esta o recebeu com um amigável sorriso nos lábios:

— Você está com medo? — Perguntou com o mesmo ar de riso.

— Acho que estou ansioso, e não com medo. — Respondeu curioso. — Mas me sinto confiante e pronto para minha iniciação.

— Não se preocupe. Você está realmente pronto. Buscou com tamanha força desde que chegou aqui, que não há mais o que temer. Este é o seu momento, pode acreditar. — Disse Conceição mantendo aquele ar de riso e mistérios, meio de canto de boca, certamente para lhe acalmar a alma.

— É. Acredito na senhora... Deve saber disto mais que eu. Eu não sei de nada. — Disse baixando a cabeça indicando que estava pronto para começar.

— Não tenha medo, — começou a explicar. — Vou levantar o meu braço e pôr a minha mão sobre a sua cabeça. Você vai fechar os olhos e se concentrar na música. Deixe o som dos tambores tomarem sua cabeça, depois a sua mente. Sinta. Apenas sinta. Depois se solte e deixe-se levar. Procure não pensar em nada, porque este é o seu momento.

Sanz ouviu atentamente as palavras fitando-a nos olhos. Contudo, não deixou de perceber as mentes que lhe mediam de alto a baixo; não deixou de perceber os olhos que o fitavam, tanto nos corpos quanto no espaço sobrenatural da grande sala.

Conceição levantou a mão. Assoprou em seu rosto uma fumaça. Sentiu o cheiro forte. Um cheiro desconhecido que não podia explicar. O fumo já conhecia, mas não com aquele cheiro. Um cheiro de fumo anormal, desconhecido até então.

Com a mão de Conceição posta sobre sua cabeça, fechou os olhos. Podia sentir os “cavalos” girando ao seu redor. Aquelas carnes quentes estavam inconscientes, fazendo girar corpos soados que se espremiam dentro do recinto. Giravam ao prazer dos espíritos dentro da sala, e quando um deles passava perto, podia sentir mesmo à distância. Sentia os corpos. Podia sentir o calor daquelas carnes entregues.

“Onde você está neste momento? Você acredita nas entrelinhas da existência? Em que plano você existe agora? Onde você está neste momento? Estaria ainda no universo, na terra, no espaço, no céu, no inferno ou em uma mera entrelinha da existência?”, tais eram seus questionamentos dentro da mente, enquanto suores lhe respingavam no braço, mas não podia perder o foco. Este era seu momento; era a sua primeira vez no círculo.

Há três meses daquela noite esperara pacientemente pela oportunidade. Não sabia que seria convidado ao centro da sala naquele dia, até porque chegara atrasado, já no início da noite depois de um dia duro de trabalho na Gazeta Diária. Mas a surpresa nem lhe foi tanta. Estava pronto.

Agora ouvia os tambores e o ponto entoado com força. As mãos de Ricardo batiam forte sobre as peles de animal esticadas. As mãos em volta batiam palmas estalando o ritmo; os pés acompanhavam marcando o passo no chão de terra batida. A música e a batida entranhavam-se em sua pele. Seu corpo se arrepiava. Ricardo marcava os tambores sem piedade e as vozes das mulheres cantavam:

"Vem gira-mundo
Gira mundo gira
Quem não gira, gira-mundo
Não conhece tua ira"


Teobaldo levantou a cabeça um pouco como se olhasse para o alto. Os olhos permaneciam fechados, contudo ele não deixava de ver os espíritos. Não via formas, via vultos. Não via rostos de monstros ou coisas do tipo, via fumaça negra em movimento, formando imagens sobrenaturais com expressões de fúria, de riso, de deboche, de ódio... E ele queria mais. Queria mais que todos. Queria tudo.

Com a cabeça levantada abriu os braços. A música começava a tomar o seu corpo. A mensagem da música invocava um espírito. A letra da música começou a tomar sua mente. Não pensava em nada agora. Prestava atenção na música e no que ela dizia. Seu corpo começava a girar debaixo da mão da velha mãe de todos.

"Vem gira-mundo
Gira mundo gira..."


E começando a girar, o ritmo foi acelerado pelo percursionista. No ritmo do ponto seu corpo se projetava debaixo da mão da velha líder. Começou a girar mais forte e uma espécie de ódio tomou sua mente. Seus dentes trincavam dentro da boca. Queria rosnar como um bicho. Queria virar uma espécie de bicho e, neste momento, lembrou-se de manter a lucidez, porque não queria cair no escuro.

Queria ver tudo. Queria entender tudo. Queria tudo quilo para si. Precisava de tudo o que estava acontecendo.

Girando em alta velocidade baixou a cabeça. Uma espécie de ódio forçou sua carne. Suas veias ressaltavam pelo braço e pelas pernas dentro da calça. Podiam-se ver as veias em alto relevo também nos pés. As veias do pescoço estavam grossas mais que o dobro do normal. Parecia que iam explodir fazendo jorrar sangue pela sala. Os dentes estavam cerrados dentro da boca.

"Quem não gira, gira-mundo
Não conhece tua ira"


Sanz babava. A baba escorria-me pelo rosto e era tirada pelo vento que passava pela boca conforme girava. A baba voava e grudava no longo vestido de Conceição que sorria, firme, rija, braço ereto, mão rija sobre a cabeça do mais novo corpo que girava dentro do salão. Mas não era qualquer corpo. Era um corpo escolhido.

A voz de Sanz começou a sair por entre os dentes. Queria rosnar como uma fera. Sua respiração acelerou. Seu peito estufava quando puxava o ar. Bufava de ódio quando o ar saía.

Encurvou o corpo para frente como se fosse fazer uma reverência e permaneceu girando nesta posição. Os braços ainda abertos tinham os punhos cerrados. Mãos que mais pareciam uma marreta querendo esmagar uma cabeça. Girava forte. O pé direito batia com força sobre a terra. O pé esquerdo mantinha o corpo em equilíbrio na gira.

Na linha escondida entre o sobrenatural e físico sentiu, sim, ele sentiu uma força estranha, negra, puxar-lhe pelo braço.

Girou mais rápido, desequilibrando o corpo e caindo diante de todos. As vozes gritaram dentro da sala. Cavalos e espíritos como se fosse uma festa. Confuso, visão embaçada,via vultos em trevas. Sabia que tinha caído. Ficou com mais raiva ainda e gritou em alta voz:

— Quero mais... eu quero mais... mais... — Respirava ofegante. Estava de joelhos rosto a um palmo do chão. Sentia o cheiro da terra. —Eu... quero... mais... você não pode... me privar... disto...

— Calma rapaz. — Disse Conceição com branda voz. —Calma... tudo a seu tempo. Você foi um vencedor hoje...

— Tempo? — Retrucou mesmo sem querer. — O que sabes tu mulher sobre o tempo? — Perguntou ainda sem saber por que estava falando de tal maneira.

A forma com que as palavras saíram da sua boca, o glamour com que as palavras foram pronunciadas e a força do sentido da questão a silenciaram. Ela o olhava com certo espanto.

Enquanto respirava forte sas costas subiam e desciam; a baba caía ao chão; o suor banhava-lhe o corpo. A camisa branca e a calça da mesma cor estavam completamente molhadas. Em silêncio Conceição se agachou ao seu lado direito com a mão esquerda sobre suas costas.

— Você teve uma experiência mais forte do que eu imaginei que teria hoje. Você não quer descansar agora? — Perguntou demonstrando preocupação no semblante. O sorriso de canto de boca havia desaparecido.

— Não. — Respondeu secamente sem conseguir controlar a raiva que havia se instalado dentro de seu ser, aparentemente sem motivo especial. — A iniciação não foi completada. Faça a sua parte mulher, e me deixe fazer a minha. — As palavras saíam da boca sem controle... sem o seu consentimento.

— Sim senhor. — Respondeu ela com semblante mais sério.

Solenemente ela se levantou. Indicou ao percursionista que puxasse outro ponto, e entre sinais indicou o espírito que ele deveria chamar cantando.

Ricardo parou por um breve momento. Baixou a cabeça e pensou. Tomou fôlego. Apertou as mãos que começavam a doer no contato brusco com a pele de animal. Concentrou-se como convinha ao momento, gritou alto um grito de guerra espiritual e bateu forte puxando um ponto mais violento, de guerra, matador, forte.

Ele também dançava enquanto puxava o canto. Seu corpo estava tomado por espíritos dançantes que festejavam dentro da grande sala. Metade do percursionista estava consciente; a outra metade manifestava-se tomada de espíritos e entidades variadas, porque hora dançava de um jeito, e hora mexia-se de outra maneira.

Os demais cavalos no salão, os que trabalhavam e os que assistiam, foram tomados pelos espíritos do lugar. Um grande mover sobrenatural tomou a sala e todos ficaram possessos, a não ser a velha líder espiritual e eu.

De joelhos ao chão Téo sentia ódio. O que era aquilo? Não podia responder. Estava consciente e sabia o que acabara de experimentar. Que força era aquela que lhe puxara pelo braço? Ele sabia que uma nova etapa de sua jornada acontecera ali, naquele instante.

“Onde você está neste momento? Você acredita nas entrelinhas da existência? Em que plano você existe agora? Onde você está neste momento? Estaria ainda no universo, na terra, no espaço, no céu, no inferno ou em uma mera entrelinha da existência?”, as questões lhe perturbavam novamente.

Ainda de punhos serrados apoiou-se sobre as mãos fechadas e levantou.

Um olhar, como que de lobo, lhe tomou conta dos olhos. Expressão maligna no rosto; dentes trincados dentro da boca fechada. O suor escorria pelo corpo. Olhou a todos dentro da sala. Pensou: “Hipócritas! São todos hipócritas... o que buscam? O que querem? Vejo corpos vazios. Vejo mentes vazias. Estão todos mortos e não sabem disto... mas eu... eu viverei e todos verão... eu viverei...”

Neste momento sentiu como se um cão se apoderasse de sua carne. Sentiu dores pelo corpo. Seus músculos doíam como se um corpo maior quisesse lhe rasgar ao meio para entrar em suas carnes. Seus músculos esticavam. Uma dor terrível lhe percorria os tendões. Os músculos e nervos do pescoço enrijeciam.

Os dedos das mãos se enrijeceram. Todo o seu corpo começou a ficar duro. Os dentes doíam dentro da boca com a forte pressão que sofriam das mandíbulas. Os músculos dos braços estavam igualmente enrijecidos.

Atenta ao trabalho que comandava dentro da sala Conceição a tudo observava como se estudasse o seu mais novo iniciante. “Você tem que dar início ao seu desenvolvimento... você tem que desenvolver”, tinha ela dito poucos dias antes.

As veias queriam lhe saltar da pele. O suor escorria em bicas. O chão estava molhado. Os tambores retumbavam o som do inferno. Os corpos bailavam em danças infernais influenciados à distância por espíritos malignos que queriam sua alma, mas eram impedidos. Quem... qual espírito tinha, neste momento, a honra de lhe transformar?

Seu grito infernal ecoou por toda vizinhança.

O salão estava em chamas espirituais. Chamas infernais tomavam conta do recinto. Homens e mulheres giravam em uma dança sobrenatural festejando o inferno. Mães-pretas, pai-velhos, exus e uma sanha infernal se misturaram ao calor da batucada. As vozes se misturavam. Umas riam, outras rugiam, outras emitiam sons indecifráveis e Sanz fazia estremecer as paredes carcomidas pelo tempo com esturros.

Ao som dos tambores, mantendo o ritmo, ele gritava como uma fera em fúria.

— Eu sou... o tempo... eu sou... a dança... eu sou... o inferno... eu sou... eu sou...

Conceição tonteou. Ao perceber que podia cair tomada pela força sobrenatural dentro da sala escura e cheia de fumaça retirou-se para o pequeno altar ao fundo. Escorou-se na parede ao lado de Ricardo que fazia retumbarem os tambores, e olhou. O que viu, jamais esquecerá.

Téo havia silenciado depois de tanto barulho e agitação. Estava do outro lado da sala, ao canto direito da sua visão. Todos os cavalos paravam aos poucos de girar. Por sobre as cabeças dos presentes Conceição viu duas asas negras que se levantavam de suas costas, pelo canto das paredes. De tão grandes tocaram o teto e continuaram a crescer em sua direção, de forma que se emborcaram por sobre as pessoas que estavam dentro da sala.

Apenas ela via o fenômeno.

Vagarosamente caminhou em direção ao canto direito da sala enquanto tentava assimilar o que vira em sua mente.

Sanz estava lá. Ereto. Postura de uma sentinela romana à porta do rei, como se segurasse uma espada na mão esquerda que lhe cruzasse o peito para o lado direito. Cabeça erguida, mas não olhando para cima: olhava por cima de todos. Sua estatura parecia ter aumentado. Era como se tivesse crescido uns vinte centímetros. Imponente, tinha os olhos enegrecidos não pela falta de luz dentro da sala, mas pelas trevas sombrias, de uma forma que nem Conceição, até então, experimentara.

— Saudação. Quem vem lá? — Perguntou a mãe-de-santo com reverência e força.

O silêncio... O silêncio... O silêncio... E ela levantou a cabeça para olhar-lhe no rosto. Espantou-se com a negridão que viu. Seus olhos morteiros se arregalaram.

— Quem vem lá? — Perguntou novamente.

— Tudo há seu tempo, — disse o espírito com voz gutural. —Mas se você não tem tempo para mim, não terei tempo para você. Eu não queria estar aqui, mas preciso cuidar do que é meu. Não vim para trazer respostas. Vim contra minha vontade apenas para cumprir uma missão que não queria.

— Tudo há seu tempo companheiro, disse. Conceição reverenciou mais uma vez, deu três passos para trás sem virar as costas, e saiu. Todos o olhavam agora, mas ninguém lhe dirigiu palavra.

Nenhum comentário:

Postar um comentário